PAPEL
- Vanessa Caldas
- 23 de jun.
- 4 min de leitura
Atualizado: 15 de set.

Atravessei um mar de fogo, para chegar até aqui. Dizia a canção...
Você se lembra da sua vida antes disso? Ele me perguntou. Sim, eu disse. Eu me lembro.
Eu me lembro bem do desconforto, da sensação de não pertencer a este mundo e achar que me colocaram aqui por engano. Eu me lembro da dor constante. Era doloroso existir. Era doloroso sorrir. Sim, eu me lembro de todas as vezes que senti uma parte da minha alma desmoronar, pouco a pouco até achar que não sobraria nada de mim. Mas entre um entorpecimento e outro, entre uma distração e outra, eu fui seguindo meu caminho, até ter coisa melhor para lembrar além da tristeza. Em algum momento aquele bolo de sensações ruins que davam um estranho significado ao que eu era, passou a ser apenas uma breve descrição do que eu já não sou mais. Porém, não, eu nunca me esqueci de como tudo começou e ainda choro toda vez que paro para pensar no que passei pra chegar até aqui.
Minha primeira aula de filosofia foi uma entrevista do Caetano Veloso, onde ele disse: O que a gente leva dessa vida, é a vida que a gente leva.
Eu me lembro de um monte de gente fazendo piada desta frase, mas este é um dos melhores ensinamentos que tive na vida e meio que virou um mantra para mim.
Não apagar as ideias que tenho, não deixar o esquecimento tomar conta de mim.
Descobri que o pior mal que existe é a perda de memória. Se você perde um olho, você ainda enxerga, se você perde um pulmão, você ainda respira, mas se você perde uma parte de sua memória, é uma parte de você que deixa de existir bem aqui neste mundo, enquanto você ainda está nele. Faça sempre uma forcinha para lembrar. Desde as loucuras bobas que você acreditava na juventude, às piores maldades que já te aconteceram. Não se permita esquecer. Existe uma diferença muito grande entre reprimir e esquecer. Eu não estou falando para você passar todos os dias lembrando daquele fora de quando você perdeu aquele que poderia “amor da sua vida”. Certas coisas não merecem ser lembradas, certas emoções não merecem ser sentidas mais de uma vez, porém foram necessárias para que você se tornasse o que você é hoje. Continue vivendo, escrevendo e passando as páginas da vida, mas de vez em quanto folheie tudo. Pare para ver as marcas deixadas nesse teu livro aí.
Escute o que seu coração tem para dizer de tudo o que passou. Certos aprendizados só aparecem quando a gente faz isso, e certos traumas perdem a grandeza quando nos damos conta de que cabem em alguns capítulos, mas que a história inteira é bem maior.
Dê valor a isso, dê valor à sua história por mais triste e incomoda que ela possa ser, seu caminho é o tesouro que você leva dessa vida quando você morre, é isso que Caetano estava dizendo. O que a gente leva dessa vida é a vida que a gente leva, os sonhos que a gente alcança, as batalhas que a gente luta, a dor, a tragédia, mas também o amor e o encanto. A beleza que somente nossos olhos são capazes de enxergar, as sensações que somente nossos corpos podem registrar. É isso que a gente leva.
Assim como alguns budistas, eu acredito que quando morremos, nós evaporamos e retornamos à grande teia ou oceano que tudo conecta. Nós dissipamos em partículas de memórias e emoções e essas partículas e emoções são o que continuam seguindo da nossa existência. É a maior prova de que estivemos aqui. Tudo o que sentimos, tudo o que vivemos.
É por isso que eu prefiro registrar em papel ao invés de só escrever no computador. Ainda que as teclas da máquina sejam mais duras, ou a minha letra saia feia à caneta. Eu quero registrar o que eu sinto, o que eu vejo, o entendimento do mundo sempre me pareceu como algo físico, científico mesmo. Eu acredito no que aprendo e meu aprendizado nunca veio em forma de pix. Agora imagine você, logo o dinheiro, a coisa que o ser humano é mais capaz de dar valor, se tornou algo completamente virtual. Não existe uma sala com o tesouro de bilhões do Elon Musk e um dragão tomando conta. São apenas uns dados numa nuvem. Precisamos sempre lembrar disso, basta apenas nascer alguém mais inteligente que seja capaz de apagar tudo, todos os dados do planeta, e pronto, começou a revolução.
Os dedos sujos de tinta, o cheiro de óleo de engrenagem, o som das teclas ou ainda os garranchos machucando a folha. Existe algo muito real sobre escrever, sobre registrar. Hoje eu ouvi uma blogueira falando que o presidente estadunidense tirou investimento de todas as bibliotecas e está querendo revisar os livros. Não, eu não estou transcrevendo um parágrafo de George Orwell. Tudo o que nós postamos na internet pertence a ela, e agora também pertence à inteligência artificial. Queiramos ou não, tudo o que escrevemos, fotografamos, filmamos e falamos pode ser modificado por esta entidade que é capaz de criar a percepção de um mundo totalmente idêntico ao nosso e ainda assim completamente inexistente, falso e mentiroso. A minha pergunta é: O que vai comprovar a vida real?
Os originais de tudo que aconteceu, foi vivido, sentido, respirado estão na memória e quando a gente morrer vai estar tudo lá, beleza, enquanto isso nós precisamos de mais registros aqui antes que tudo se torne uma grande mentira coletiva e a gente tenha dificuldade para lembrar das coisas. Não há ginkgo biloba que dê conta de nossas memórias apodrecidas pela internet. Nós precisamos de mais pape,l pois a teia do universo não tem como ser falsificada, mas a das redes sociais, sim.
As livrarias não podem fechar, as câmeras analógicas não podem morrer. Artistas que desenham de verdade, que realmente estão registrando o mundo e não criando uma cópia imperfeita. Platão estava errado, ele achava que este mundo era uma cópia imperfeita, imagina o que diria se visse os desenhos da IA. Nós não fazemos cópias, nós não somos cópias, nós somos registros.
O que eu vivi, eu senti fisicamente, sabe? Eu sinto que posso segurar o que aprendi, o que carrego comigo, você não sente? Um peso da vida?
Pois então, eu trato isso como um prêmio. Ergo-o e faço um discurso de agradecimento por um momento. Depois continuo escrevendo, em papel...


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