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AS GAIVOTAS NÃO CANTAM MAIS

Atualizado: 15 de set.


  Eu passei três horas escrevendo um relato de Valpraíso, mas fechei o Word com pressa sem salvar o arquivo... Mais de cinco páginas bem densas, perdidas. Ossos do ofício de quem confia nas máquinas. Quando vê, já era! E quase que eu começo outra crônica sobre papel.


A verdade é que eu deveria ter escrito mais enquanto viajava... Poderia, deveria... Mas é o que eu sempre digo: primeiro a gente vive, depois a gente escreve.  Eu fiz pequenas notas e grandes fotos, mas nenhum verdadeiro registro daquilo que pensei, daquilo que senti, no fim, ficou tudo guardado na memória...


Disse ela, como se houvessem passado anos, mas fazem apenas alguns meses desde que retornei, então pera lá. Ainda tenho muito o que dizer!


Na minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, dizia o poeta. Já as gaivotas, elas não cantam mais. A verdade é que eu nunca tinha sequer escutado o canto das gaivotas. Eu escutava aqueles sons nas imagens das praias e dos portos dos filmes estrangeiros, mas jamais ouvi algo parecido aqui no Rio, nem sabia qual era o som de gaivotas especificamente. Na vida real, as poucas gaivotas que vi eram apenas parte da paisagem. Nada em que houvesse muito o que reparar, mas é aí que o viajar, o sair do lugar de sempre, ganha sentido. Algo perfeitamente comum e definido para mim, uma gaivota, mudou totalmente de significado nesta viagem. E mudou também de nome.


Em Valparaíso, as gaivotas são como uma população à parte. Nos ares ou pelas praias, lá estão elas, sempre falantes e cantantes e até em pequenos grupos conversando como quem coloca as fofocas em dia, assim no meio de uma praça. Eu via gaivotas rindo e falando e gritando por toda parte. Elas comandam a cena. Todas as manhãs eu acordava para trabalhar e olhava pela imensa janela do quarto do hostel: lá estavam elas. Em telhados e ruas e sobrevoando o porto. Planando e falando, às vezes gritando... Dominando tudo.


"Gaviotas", como se diz em espanhol, grafia esta que me agrada muito mais do que a brasileira, diga-se de passagem. Eu nunca havia entendido o fascínio dos ornitólogos. Aliás, eu li um livro maravilhoso que continha histórias de personagens incríveis, mas o que mais me prendeu foi o fato do pai do protagonista ser um ornitólogo e que que se ele não fosse, nada do livro teria acontecido. Mas o que faz alguém se fascinar pelo comportamento de pássaros, sabe? Pra mim era muito estranho. Hoje eu posso explicar. Eles são tão ou mais interessantes que as pessoas. A linguagem, o comportamento, as relações entre os pássaros são absolutamente complexas e muito curiosas. Eu escutava as conversas e ria junto com elas sem nem entender a piada. As gaviotas são fascinantes.


Nas dunas de Concón as gaviotas se coroaram como rainhas da porra toda. Depois de vinte minutos de uma subida destrambelhada com as minhas duas pernas eu cheguei lá no alto tive uma das vistas mais incríveis da minha vida enquanto e acompanhava gaviotas brincando de simplesmente abrirem as asas e serem levadas pelo vento. Sem mover uma pena sequer, sem pensar, sem nem se preocupar com o que aconteceria, elas simplesmente abriam as asas e o vento as levava.

Ali eu entendi que deveria fazer o mesmo...


No alto das Dunas de Concón ,o vento faz com que tudo voe. Seus medos, seus pensamentos, sua noção de que é o tempo, do que é a vida. Eu também voei.

Era minha primeira viagem internacional sozinha e foi ali que eu percebi que ainda haveria muitas montanhas e muitos horizontes, muitos voos e muitos pássaros para observar, bastava eu abrir minhas asas e deixar o vento me levar também.

O mundo é grande e tenho muito o que conhecer, mas eu nunca esqueço de onde eu vim. O lugar onde as gaivotas planam em silêncio.

Vai ver elas por aqui, elas estão pensando...

 

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